O Criador e sua Obra
Por Alex Lipszyc
“Será que eu posso vender um quadro meu, Alex?”, questionou-me meu velho, quando já se aproximava dos últimos dias de uma vida inteira dedicada à arte. Fundador da Panamericana Escola de Arte e Design e um dos responsáveis pela profissionalização da criatividade no Brasil, Enrique Lipszyc, meu pai, encontrou em seu amor pela arte uma forma de ruptura. Seu pai, meu avô, chefe de uma família tradicional judaica, nunca aceitou o filho artista.
Morreu sem fazer as pazes com o jovem que, por conta do embate familiar não resolvido, desenvolveu uma espécie de bloqueio que o impediu de se dedicar profissionalmente à sua arte.
Enrique não se permitia mostrar ao mundo o seu talento, apesar de nunca ter deixado de exercê-lo, sem nunca precisar vender um quadro sequer. Criar uma escola de arte foi a maneira que encontrou de unir o lado empresário e administrador, do qual meu avô teria orgulho, e ao mesmo tempo vivenciar e colaborar com o desenvolvimento do mercado de design, artes visuais e publicidade no Brasil. A Panamericana já nasceu moderna e visionária, apostando na evolução cultural, artística e tecnológica da época.
Questionador e transgressor, meu pai apostou forte na criatividade e na inovação para reinventar a escola diversas vezes ao longo de seus muitos anos. O professor dedicado, que estudava para dar aulas e, consequentemente, se desenvolvia junto com seus alunos, era também desenhista voraz e pintor cauteloso. Sua obra é toda construção. Ganha expressão individualizada conforme vai se desenvolvendo. O artista, para quem desenhar era um gesto natural, quase inconsciente, se encantou com o desenvolvimento do próprio trabalho, quando os desenhos, que eram a base da sua expressão artística, se transformaram em pinturas e em novos aprendizados.
Obcecado pelo mito de Adão e Eva, retratou, ao longo da sua vida, a história do casal primordial para além da visão religiosa, contestando a ideia de que religiões têm autonomia para discutir o certo e o errado. Intuitivo, criou inúmeras obras de arte que fazem uma conexão de milhares de anos, uma espécie de viagem do tempo, nos provando que ainda somos os seres pré-históricos vivendo em cenários diferentes. Apesar dos milhares de anos e de todas as evoluções tecnológicas e intelectuais, continuamos sendo os mesmos de sempre.
Disruptivo e visionário, usou a arte para discutir a sociedade e as relações humanas de maneira genuína, retratando Adão e Eva como a base da história moderna da humanidade. Seus desenhos e pinturas mostram Eva empoderada, sempre no controle da situação, promovendo a ideia de que a humanidade nasceu do matriarcado, de forma completamente contrária à ideia de sociedade patriarcal.
Sua obra nega a perfeição do paraíso e da criação da humanidade, expondo a ambiguidade e contradições do mito do casal primordial. Muitas vezes, falava como se tivesse se transportado para a época, como se visitasse Adão e Eva para acompanhar o cotidiano deles. Se sentia parte daquela história. Tenho cá pra mim, inclusive, que, de uma certa maneira, meu pai se colocou no lugar de Adão ao retratá-lo e colocou a minha mãe no lugar da Eva.
Por meio do expressionismo mais puro e simples, usava a arte para externar a maneira como via a vida e a humanidade. Com sua linguagem libertadora, conseguiu expressar muito mais do que as palavras e os livros de história em um ambiente bidimensional. A somatória de elementos visuais contidos em suas obras diz muito e abre margem a diferentes interpretações.
O lado professor anotava absolutamente todos os passos da construção de cada tela ou desenho, desde o rascunho até o resultado final, citando detalhadamente técnicas e materiais. Arista sui generis, pintou até o dia em que nos deixou. Algumas das telas e desenhos inéditos produzidos por ele entre 2012 e 2020 estão finalmente expostas aqui, em comemoração aos 60 anos da escola que ele construiu, reinventou e tanto amou.
Não sei, velho. Talvez possamos, sim, vender seus quadros. Eu só não sei se quero me desfazer de alguma de suas obras. Minha única certeza é de que faço questão de mostrá-las ao mundo. Porque tenho orgulho de poder celebrar seu talento e seu legado.
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